terça-feira, 1 de setembro de 2009

La Gran Sabana

Depois de Chichirivichi e de uns dias em Caracas, eis que a família sai em caravana para nove dias na Gran Sabana da Venezuela. Situada no Sul desta e em fronteira com o Brasil Amazónico, a Gran Sabana é tal como o nome indica uma grande savana. Com selva nos pontos baixos e próximos de rios e enormes espaços vazios de tudo por centenas de km. Aqui se situa o Salto Ángel, que é nada mais nada do que a queda de água mas alta do mundo com os seus 979 metros de extensão e 807 metros de queda sem interrupção (Queda esta que não chegamos a visitar visto não estar na rota escolhida). As comunidades indígenas, umas menos civilizadas do que outras espalham-se em largo número por todo o parque natural Canayma e depois de milhares de anos a viverem do que a fauna e flora locais lhes davam, modernizam-se com o tempo e passam a viver com o turismo (que felizmente não é desmesurado) que lhe vai passando pela frente. Desde guias ao artesanato, desde estadias em parques de campismo de estilo indígena aos botequins de comidas, tudo lhes serve para sobreviver aos tempos que por eles não passa. Comunidades pobres e crentes no que lhes interessa, viciadas em águas ardentes e alcoólicos por natureza, comunidades que não percebi nem compreendo mas que se vestem como os da nossa civilização, vão sobrevivendo no meio de Tepuys e planícies sem fim à vista.

O parque natural Canayma trás o nome emprestado ao espírito maléfico com o mesmo nome. Diz a lenda dos índios que Canayma é o nome de um espírito mau que vive no cimo dos tepuys e montanhas altas. Quem lá entrar corre o risco de não sair mais, as crianças são os mais atacados já que o espírito vive das suas almas. Se um guia é pedido para as montanhas, o guia é dado até ao sopé da mesma, os indígenas não sobem crentes que são nos seus espíritos, mais certos não podiam estar – como nós que em tudo e nada acreditamos ao mesmo tempo. Contou-me o Sr. Victor, um dos da nossa caravana, com todo o rigor e promessas de veracidade que à dois anos atrás um seu amigo de universidade e campista profissional decidiu subir um tepuy com uma amiga do Canadá que se fazia acompanhar pelo irmão de 12 anos. Na subida e entre brincadeiras perdeu-se o irmão de 12 anos que o Sr. Victor jurou a pés juntos ter conhecido. Doze dias e doze noites se procurou pela ovelha tresmalhada e doze dias e doze noites se desesperou por a criança nunca ter sido encontrada. Um ano após o acontecimento, um grupo de turistas em conversa com os locais numa noite de fogueiras disse que durante o dia ao filmar um dos tepuys viu um vulto de uma criança ao cimo do mesmo. Com a ajuda de binóculos o vulto foi confirmado, de olhar fixo nos turistas e sem se mover. Este facto contado aos locais, junto com a descrição de tal vulto fez despertar os locais que logo alertaram as autoridades. Durante outros doze dias e doze noites se esperou encontrar a criança e outros tantos doze dias e doze noites se desesperou por a criança não aparecer. O mistério do mundo civilizado continuou enquanto que o mundo indígena o explica com o alimento do Canayma – “para que os rios continuem a ser alimentados com a água das chuvas, para que o mato cresça e floresça como sempre, o Canayma tem que ser ele próprio alimentado pelas almas dos mais inocentes”.

Lendas para uns, histórias para outros e vidas perdidas para os mais desafortunados ou descuidados.

Nós, contados no número 17, distribuídos por quatro grandes veículos 4x4 com o ar condicionado sempre ligado e com todo o equipamento necessário ao máximo conforto em campismo, viajamos por esta terra que não compreendi mas que me encheu a vista. O turista mais verdadeiro que pode haver (não no sentido mais positivo) a tentar transportar sempre o máximo que pode do seu mundo e dizendo-se aventureiro que se aventurou sem qualquer risco pela Gran Sabana.



Dia 1 – O primeiro dia pouco de interesse tem a dizer. Saída de Caracas pelas seis da matina com destino a Puerto Ordaz onde segundo o plano se iria pernoitar. As estradas sempre de alcatrão demasiado esburacado passam por fazendas abandonadas e campos que em tempos tanto deram e agora deixados à liberdade do mato crescer. Os postos de controlo da Guardia Nacional aparecem numa frequência tal que a primeira impressão é de se estar a atravessar um país em guerra. As perguntas são sempre as mesmas – de onde vimos e para onde vamos, Cédula pessoal por favor – estrangeiros? Passaporte por favor.

- São os meus sobrinhos que vêm da Europa para visitar a Gran Sabana. Não, não trazemos gasolina.

Depois de seiscentos e pico km feitos com demasiadas pausas e em demasiadas horas lá chegamos a Puerto Ordaz junto ao Rio Claro. Não sem antes ouvir a descrição da enorme ponte que precede a cidade – Puente Caroni. Em que os “Brasileiros vieram para aqui construir a ponte com o dinheiro Venezuelano e nós com tantos engenheiros a ficar de parte. Politicas à Chavez”

Dormida numa pensão, jantar numa churrasqueira, cerveja na rede do jardim da pensão, cigarro numa qualquer cadeira – igual às outras, conversas descontraídas até horas largas, sono demasiado curto e pelas seis da manhã passamos ao dia dois.




Dia 2 – Com o objectivo de outros tantos seiscentos e pico km para este dia, saímos de Puerto Ordaz rumo a uma qualquer comunidade indígena já no parque Canayma onde pudéssemos pernoitar em estilo de campismo. Paragem em Cura Isquiel Para abastecer de gasolina as nossas “camionetas” e os 5 potes de vinte litros que transportávamos e eis que por causa do tráfico de gasolina (que nesta terra é mais barata do que a água, praticamente dada aos consumidores) enfrentamos as primeiras dificuldades. O depósito não pode ser abastecido ao máximo, os potes não podem ser cheios e o medo de ficar sem a mesma é maior. Nada que um pouco de conversa e uns poucos de Bolívares não resolvam. A cidade última antes de entrar na Gran Sabana parece uma cidade fronteiriça distanciada ainda por uns 500 km da fronteira. A fila para meter gasolina estende-se por dois km mas feita curta para nós visto os turistas terem prioridade (não me perguntem porquê), os botequins de bebida e pequenas lojas de recuerdos estendem-se pelos 2 km da fila da gasolina. Vendedores de rua vendem frutos tropicais e refrescos, nas bermas da rua empilham-se milhares de pequenas latas azuis das cervejas light deixadas tanto por turistas como por locais, a estrada é uma mistura de alcatrão e terra batida e entretanto começa a chover. Chuvada tropical na curta espera para o abastecimento, abrigo num botequim com cerveja e cigarro na mão e depois de uns vinte minutos (que para os locais seriam umas vinte horas) lá arrancamos na subida das montanhas que servem de limite à Gran Sabana.

Montanhas atravessadas e a 1200 metros de altitude o primeiro vislumbre do enorme vazio que é a extensa planície. Meia dúzia de km e abandonamos a única estrada de alcatrão que segue em direcção ao Brasil. Os dias anteriores foram de pouca chuva por isso a estrada de terra está bastante transitável embora de quando em vez travão a fundo para atravessar um rego mais extenso ou um buraco mais profundo, nada que os enormes 4x4 façam em estilo de brincadeira.

A noite não está muito longe e com os diversos atrasos decidimos mudar o sítio para pernoitar para uma comunidade indígena mais próxima da pretendida. Pequeno desvio, areias esburacadas e enormes poças de água e aí está a comunidade indígena do Aponwao, junto ao rio que dá origem à queda do Aponwao. Conversa com o chefe local que fala castelhano (coisa que metade da comunidade não fala) e lá montamos acampamento por debaixo de uma grande choza (aquelas típicas casas dos índios).

A primeira impressão desta comunidade com cerca de duzentas pessoas foi de que era uma comunidade nova. Não se vê gente idosa, e o meu tio tal confirma dizendo que a idade média de vida está nos quarenta anos se tanto. A canalha passa a correr em largos bandos, o que justifica o número de pessoas em tão pequena comunidade. Rapidamente um miúdo aproxima-se a pedir uma pelota de voleibol que ao longe nos viu descarregar. Bola emprestada e foi um tal ajuntamento de miúdos a jogar o voleibol como mandam as regras deste desporto, trazido provavelmente pelos padres espanhóis que têm convento montado em Kavanayen (outra comunidade indígena ali próxima). Pergunto-me que foram para ali os padres fazer. Levar a palavra do senhor com certeza, mas com que direito? Este povo dito de não civilizado viveu séculos sem a palavra do senhor de forma descontraída. Se em pura felicidade não o sei mas também não interessa já que não é a palavra do senhor que lhe vai levar a felicidade em forma de cruz. Salvar este povo da devassidão e do pecado dizem uns, mas com que direito? Talvez o Voleibol seja a melhor coisa que estes padres Jesuítas levaram a estas comunidades – apenas se esqueceram de deixar uma bola.

O jantar foi uma pasta pré aquecida e bem saborosa regada com um bom tinto chileno e depois de uma tentativa frustrada de fogueira à beira rio os mais novos lá acabaram na conversa por debaixo de uma Choza ali perto. Dormi cansado no silêncio dos insectos que me massacravam as poucas partes de corpo a descoberto.






Dia 3 – Acordei com o enorme calor que se fazia sentir dentro da tenda e de um pulo me pus fora da mesma para mergulhar no rio ali ao lado. Entre pequenas discussões tomou-se o pequeno-almoço feito de arepas (pão de milho frito tradicional da Venezuela) e ovos mexidos, vestir roupa de “aventura”, botas de trekking e aluguer de duas canoas para descer o rio em direcção ao salto Aponwao. De cima o barulho é enorme e a queda é impressionante, mas lá em baixo o mundo parece cair-nos em cima na forma de água. Quase não se ouve o falar das pessoas tal o estrondo da água a cair. A queda é de 83 metros e os olhos mal se podem abrir tal a violência do vento provocado pela queda da água. Ao fim de cinco minutos estamos todos encharcados até aos ossos já que o vento traz consigo uma chuva torrencial vinda da queda. O Sol está a queimar e os arco-íris são vistos onde se quiser ver. As ondas da lagoa no fim da queda chegam a atingir um metro e com violência chocam nas rochas de onde tiramos fotos de sonho.

Pelo meio da mata tropical voltamos a subir no meio de demasiados turistas, chegados todos nas canoas dos índios por dois euros a cabeça. Regresso ao acampamento, muda de roupa e toca a montar nos 4x4 para ir num passeio a Kavanayen visitar o mosteiro dos padres salvadores de nações.

À noite, de regresso ao acampamento e depois de um bom jantar onde se cantou os parabéns à prima Michele, foi acesa uma fogueira na praia fluvial ali ao lado onde até largas horas se bebeu Cuba Libre, se fumaram cigarros e se conheceu dois aventureiros montados em bicicleta e que andavam a percorrer a Gran Sabana nas mesmas. Tínhamos passado por eles de tarde mas só já a noite ia bem alto, chegaram eles àquela comunidade onde montaram acampamento para permanecer 4 noites.










Dia 4 - Ao quarto dia o destino foi a cidade de Santa Elena, última cidade antes da fronteira com o Brasil e a uns 500 km aproximadamente. Por isso o dia foi de rodagem pela estrada, primeiro de terra e depois em alcatrão. Desmontou-se todo o acampamento e lá se partiu em direcção a Santa Elena onde chegamos por volta das duas da tarde. O dia ainda ia a meio por isso decidimos dar um salto ao Brasil para comer uma boa picanha bem ao estilo brasileiro. O atravessar de fronteira foi simples e sem demoras e lá estava eu em território brasileiro onde as bandeiras provavam exactamente isso. Almoço bem regado, passeio pelo pequeno mercado de bugigangas que por ali se passava e voltamos a Santa Elena, de novo na Venezuela para procurar uma pensão onde pernoitar. Essa noite foi em conversas com um português erradicado na Venezuela havia uns quase 50 anos e mais erradicado do mundo ainda naquela pequena cidade fronteiriça onde as pessoas apenas passam e não ficam havia uns 25 anos na longa vida do senhor António. Conversas prolongadas com sotaque brasileiro sobre a Venezuela, o Brasil, a Amazónia, os Índios, a Guyana, a Pantera Americana, Caracas, Chavez e por ai adiante.




Dia 5 – O dia amanheceu e pouco depois estávamos nós montados nas camionetas com destino ao Abismo de onde teríamos vista desimpedida para o manto amazónico brasileiro. Começamos a rodar e a estrada que deveríamos tomar não foi tomada. A conclusão foi um rodar de 120 km para dentro da Gran Sabana com que o único abismo a ser alcançado fosse o da nossa paciência. Com a certeza de que nos tínhamos enganado, meia volta e com a frente virada ao mesmo sítio de onde vínhamos lá continuamos a rodar. Deu ainda tempo para a paragem em duas quedas de água. Uma com direito a saltos mais radicais, outra com direito a fotos deslumbrantes sobre a pedra do fogo – encarnada e semipreciosa. A noite fez-se cedo na mesma pensão da noite anterior já que o cansaço transportado dos últimos dias e ainda em demasia não deixou a mais aventuras senão um sono profundo a partir das nove da noite, nem jantar nem coisa alguma.






Dia 6 – Neste dia, a manhã foi guardada para a vista de mais uma das muitas quedas de água e a tarde para montar acampamento acima uns km de Santa Elena e já com o carro virado a Norte. O acampamento, esse à beira de mais um dos milhares de rios de tamanho lugar e a dar origem a outras tantas milhares de quedas de água. Outra choza, foi o abrigo escolhido para montar tenda. O costume – 5 tendas de ponta, duas tendas de mosquiteiro, umas quantas redes, dois bicos a gás para cozinhar, casa de banho (sim, digo casa de banho com direito a retrete e tudo), mesa e respectivos bancos e tudo o mais “indispensável” à sobrevivência no meio do nada que é o campo e o tudo que é a natureza. Outras duas noites ali iríamos ficar a pernoitar. A noite caiu sobre nós com uma chuva de estrelas de dimensões nunca antes por mim vistas. Pareciam que queriam iluminar a nossa noite, pareciam-se a desejar o toque, pareciam cair no dia do juízo final, parecia e era o céu mais estrelado já visto por estes dois olhos que a terra há-de comer. O jantar regado com mais um reserva chileno (e perdoem-me se o nome a memoria não permite dar), terminado com um Vintage Port e continuado com mais uns quantos cigarros que davam o fumo que acompanharam as palavras partilhadas por mim e o outro – Joel de nome. Mais uma larga noite de filosofias nada baratas mas jovens de idade, mais uma noite de deixar lágrima no canto do olho – sou sentimental não dos sentimentos mas sim das palavras e as sinceridades deixam-me assim, os pontos em comum deixam-me ainda pior e o vinho deixa-me no estado de “SUPER GUERREIRO” como diria o tal companheiro Joel. Dormimos depois, não por debaixo da tal tenda mas sim por debaixo do peso de uma consciência que por vezes deixa de existir tal a nossa arrogância de juventude demasiado adulta. E desta não peço desculpa pela minha arrogância mas sim: exijo desculpas pela vossa ignorância.





Dia 7 – Os primos decidiram fazer uma caminhada à descoberta de uma aventura. PONTO. Equipados como mandam as regras dos aventureiros, saíram em busca da Puerta del Cielo. PONTO. Éramos (deixei-me contar pelos dedos) oito os aventureiros: Gil (eu mesmo), Joel (quase irmão), Raul (irmão do quase irmão e por isso quase irmão por afinidade), Filipa (irmã), Titã (irmã), Ritinha (prima surpresa) e Leonardo “Di Caprio” (primo desvairado). Começamos a descer em direcção ao Poço Azul e dai tomamos o sentido descendente do rio. Chegamos ao nosso fim do dito já que uma cascata de umas dezenas de metros não deixou avançar. Com a catana na mão cortamos mato e caminho quase na vertical e no cimo do monte descemos um caminho sinuoso e de inclinações quase proibidas em direcção ao rio que dá origem à tal porta do céu – que excitação a nossa de tentar chegar à “nossa” porta do céu. Chegados lá mesmo abaixo, subimos rio sem antes o cruzar por um tronco de mais uma das muitas árvores caídas por ali. Catarata mais acima, larga e de beleza paradisíaca, deserta que o caminho é longo para o turista do carro de ar condicionado ali chegar e com lagoa a obrigar banhos. Subida ao lado da dita e uns metros valentes acima lá aparecia a cascata que cai da porta do céu. Essa era demasiado alta e sem auxilio de equipamento próprio, impossível de subir. A porta do céu ficou a uma mera centena de metros na vertical, vimo-la por cima e por baixo e ficou no nosso meio. Será assim difícil atingir a porta do céu ou apenas é preciso algum equipamento? Deixará o nosso senhor entrar com tamanha facilidade nessas portas? Ainda pensei chamar o São Pedro mas este pareceu incomodado com tamanha proximidade já que começou a chover torrencialmente. Encharcados até aos ossos, com calores ainda maiores começamos a descida e depois subida em direcção ao acampamento, foram umas meras 3 horas e meia de caminho mas que valerem bem pelo esforço e satisfação.

Adormecemos após jantar e cartada, satisfeitos e realizados como aventureiros que somos de verdade. O São Pedro aceitou a nossa humildade de não entrar na porta do céu e deu-nos outra noite de estrelas divinais, santas!









Dia 8 e 9 – Meto dois dias num só, porque estes dois dias foram apenas de regresso. E, sendo sincero, o regresso pouco me importa na viagem senão a própria chegada. Esta chegada foi mentira porque não foi a chegada à nossa casa. A minha chegada está ainda longe em tempo e espaço e por isso mesmo nem vale a pena comentar. Puerto Ordaz novamente, El tigre de passagem, tempo ainda para um mergulho numa qualquer outra praia paradisíaca (parece que aborrece mas não) e Caracas à vista com muito trânsito uma vez mais e paciência infinita.







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