quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Boca del Hueque

Viajar é uma palavra com muitos sinónimos, pelo menos para mim que sou uma pessoa de sinónimos. O principal, claro, e sempre e na minha humilde opinião viajar é TUDO sobre as pessoas, as que vemos, as que se cruzam de uma ou outra maneira, as que se criam laços de amizade, as que se fornicam (fornicar é feio mas parece bem), as que se deixam conhecer e as que não se deixam conhecer, as que me mostram algo, aquelas a quais eu mostro algo, as bonitas e as feias, as vagabundas e as politicamente correctas e as politicamente incorrectas e todas as pessoas são realmente aquilo que me interessa mais numa viagem. Depois das pessoas vem a outra coisa que está directamente ligado às pessoas e que não é mais do que as coisas que me fazem perceber as pessoas. Aqui pode vir um lugar, uma frase, uma conversa, uma palavra apenas, um aspecto físico, uma paisagem, uma sociedade, um meio ambiente, um pensamento, uma mirada, um orgasmo, vários orgasmos, nenhum orgasmo, uma mensagem, um piropo, um livro (estes cabrões que me dão a maior quantidade de sinónimos das pessoas, das viagens), uma revista ou um jornal, uma mensagem electrónica, e por ai adiante no dicionário das palavras.

Este último fim-de-semana teve tudo a ver com pessoas e nada a ver com pessoas, contrariedades que juro por minha honra serem verdadeiras. Uma mais fugida de Caracas para em rumo a oeste eu, um primo meu de seu nome Ricardo, a sua novia, e mais quatro amigos irmos acampar para a Boca del Hueque. Uma praia perdida nesta costa de quase cinco mil quilómetros, deserta e quase virgem não fossem os turistas os filhos da mãe a tirar a virgindade a tudo – eu inclusive. Seis horas e pico de caminho pelo meio da noite e inicio da manhã, muito alcatrão esburacado e trânsito infernal (não estivéssemos nós a viajar pelas estradas da Venezuela), mais hora e meia em caminho digno de um bom quatro vezes quatro para finalmente os olhos se deleitarem com as vistas que tal lugar proporcionava. Um palmeiral de quilómetro e tal (sem precisões) a ficar paralelo a uma praia com o mesmo comprimento e um mar castanho que não de sujo mas sim de suspensão arenosa tal a pequena dimensão do grão de areia de tal areal. O Sol escaldava na pele lá no alto, as nuvens não existiam e um brilhante céu azul fazia as vezes de deuses.

Montamos acampamento por debaixo do palmeiral que nos dava a sombra obrigatória tal o estorricar do Sol. Os cocos por vezes faziam-se notar pelo barulho oco ao cair na areia e o estacionar perto de um tronco estava proibido – seria um desperdiçar de vidas morrer com um coco na cabeça, irónico até tal a quantidade de balas usadas na capital de tal país, não que a morte não tenha muita ironia mas esta teria demasiada.

A partir daqui nada tenho para contar! Fizemos aquilo que um grupo de jovens faz quando vai acampar: Brincadeiras, corridas, futebol, correria, banhos, tendas, comida (faltam sempre os talheres), bebidas, cigarros, conversas filosóficas, conversas quase filosóficas, conversas nada filosóficas e mais uma besteirada de acções que sabe sempre tão bem. À parte disso e particularmente para mim foram quatro dias e três noites de um retiro quase budista (não fosse o caso nada ter a haver com o budismo) no meio do nada e do tudo que é aquele paraíso. O convívio estava exclusivamente limitado às sete pessoas que por ali estavam e eu para vos ser sincero não estava muito para convívios, nada que um pouco de rum e um Tinto Argentino não ajudasse. Nos intervalos do rum e do Tinto viajei muito! Neste caso viajei pelo entendimento sempre tentado e nada conseguido das pessoas. Preguei uma cadeira a dois metros da quebra das ondas, enchi um copo com o cocktail Cuba Libre (dá-me vontade de rir da pessoa que inventou este cocktail para não falar no seu muito particular e nada verdadeiro nome), sentei-me, prendi um cigarro e abri um livro, e depois outro que foram duas as companhias dos quatro dias. Absorvi tudo que me diziam naquelas palavras para acabar desiludido com os dois manuscritos. O Kiss me once, kiss me twice era demasiado romance típico de contos de fadas para mim, o que me fez apenas ver e pensar no lado oposto – fenomenal! O outro era sobre as nossas incansáveis buscas do entendimento da humanidade actual e as suas diferenças, de nome Guns, Steel and Germs, acabou por me dar muita informação que embora interessante e muito relevante não era o tipo de leitura para a minha mente actual. No entanto deu que pensar e dá que pensar e dá-me a certeza que no fundo são tudo buscas inapropriadas e desnecessárias – nada que não seja susceptível de se mudar em pensamentos.

Pelo meio comemorei os meus vinte e três anos de existência, se os vinte e um foram de “oficialmente adulto” e os vinte e dois de capicua, os vinte e três não faço a mínima ideia do que seja. A idade é já obrigatória de responsabilidades na maior parte das vezes. No meu caso a responsabilidade é praticamente nula, mas para vos ser sincero ainda estou para perceber o significado da palavra responsabilidade na sua verdadeira essência. O significado na nossa sociedade para um jovem como eu seria possivelmente de um emprego, uma namorada a pensar no casamento e uma perspectiva de carreira. Na sua “verdadeira essência”, a palavra responsabilidade dá-me outros pensamentos que não estes, pensamentos ainda nada explícitos e por isso nada descritos – ainda. Olho para mim e vejo que realmente a idade avança, vinte e três anos são alguma coisa! Eu nunca no meu perfeito juízo entraria agora por filosofias sobre a idade já que: o dia de aniversário tem que ser comemorado como tal e sem filosofias; a minha idade não significa absolutamente nada em termos quantitativos para algum tipo de filosofia e porque a minha filosofia é das pessoas e não da minha pessoa – ainda.

Acabando com pouco interesse assim como comecei este horrível texto sem sentido, digo apenas que fui acampar o último fim-de-semana para mais uma das muitas paradisíacas praias deste paradisíaco país! Conversei e desfrutei, li, caminhei, tomei banhos de mar, de sol e de rio, vi a natureza no seu maior esplendor, sorri e ri, pensei e deixei de pensar e no final do dia, corri nu pela praia fora para todo nu tomar um bom banho de mar. Foi um aniversário diferente sem duvida alguma, mas não deixei de o desfrutar de uma particular e bonita maneira. No final de contas um fim-de-semana para me provar novamente que a vida continua a ser um milagre (claro que eu sou suspeito já que para mim a vida sempre foi um milagre)!


















Puerto Maya - Capitulo 2

Acho que não me canso de falar de Puerto Maya, ou antes, acho que não me caso de pensar em Puerto Maya, de estar em Puerto Maya. Depois de não ter regressado quando planeado e na altura das sagradas festas desta pequena aldeia, eis que finalmente o meu tio Gil dá o abalo e uma semana depois das mesmas lá voltei eu a tal aldeia na companhia deste mesmo tio, um amigo do mesmo e um outro amigo do amigo do mesmo. Todos portugueses: dois emigrantes e dois não emigrantes, dois do norte português e dois da ilha da Madeira, tudo misturado dá demasiada confusão para explicar. Não interessa de facto explicar – todos portugueses!

Cada vez que lá volto, sou constantemente bombardeado com perguntas para que eu explique o mundo àquelas gentes. Cada vez que lá volto penso se é o mundo que se deve explicar a Puerto Maya ou se será Puerto Maya que se deve explicar ao mundo. Todo o mundo em geral perde de facto importância tal a sua demência quando o comparo a esta sobriedade e simplicidade que é esta vila, mesmo sendo os seus habitantes quase alcoólicos. Puerto Maya para mim é cada vez mais a explicação do sentido da vida – em teorias filosóficas claro. Penso e repenso no que será de facto o objectivo de uma vida para um Europeu como sou de gema e coração, penso no objectivo de vida de qualquer pessoa daquele lugar, penso no errado e no certo e duvido de quem estará mais certo ou mais errado, ou apenas menos errado.

A vila é pequena, tem cerca de quinhentos habitantes (começam a ser demasiados) e umas duzentas casas. A população vive única e exclusivamente de uma coisa – o peixe que pesca do mar. Os homens claro que as mulheres vivem com a maternidade como profissão e a conversa fiada como hobby. Os homens saem ou de noite cerrada para o mar alto ou manhã cedo para o mesmo, a buscar o sustento das muitas vidas que constituem a sua família. Pescam e vendem aquilo que pescam. Voltam ao mar apenas quando o dinheiro obtido com a sua ultima pescaria se acaba, o objectivo é apenas uma televisão nova, meia dúzia de sacos de arroz ou um naco de carne, nem uma casa mais confortável serve de desculpa, não é preciso na verdade já que a canalha passa o tempo na rua ou na praia ou na mata ou no rio ou onde quer que exista uma brincadeira nova. As mulheres passam o dia sentadas no largo mais próximo a conversar com as vizinhas mais próximas. Olham-me de sorrisos na cara quando passo por elas e um piropo sai sempre das suas bocas de grandes e escuros lábios a ver se conseguem um qualquer romance para dar mais temas à sua conversa diária.

A maior parte é de largas proporções, gordas em demasia nas suas cadeiras de plástico a comer um ou outro petisco e a beber refresco e cerveja e sumo e o que quer que haja à mão.

- Hola guapo, nos regala un refresco!

Lá de vez em quando uma mãe lá coloca uma mama à disposição para dar de mamar à última cria da ninhada. O resto da mesma anda por ai, ela não sabe, assim como não sabe a mãe que está ao lado. Passam em bandos de 8 – 10 putos, em correria e aos chutos a uma garrafa de plástico. Param quando me vêm e arrancam em desenfreada correria para me bombardearem com perguntas, que eu não lhes entendo metade do que dizem, não pelo meu castelhano arranhado mas pelo seu castelhano improvisado. Sorrio

- Habla dispacio shamo!

E eles que nunca falam devagar, nem com espaço entre palavras, nem em castelhano, nem em algo que eu realmente entenda.

Os homens todos na praia – ou a carregar o peixe do seu barco ou a ver o peixe do barco dos outros, em competição diária dita em quilogramas de cardumes ou em libras de um singular. O Shiva e ancião da aldeia sentado numa mais cadeira de plástico com o charuto no canto da boca. A barba branca de cor e comprida de desleixo pinta-lhe a cara negra. Sorri com todos os seus dentes gastos para mim e começa um falar rouco naquele castelhano que tanto me esforço para entender, sem esforço sorrio e ele satisfeito com o meu sorriso volta a sorrir e vira-se de novo para o mar. O mar, esse enche-se de pontos negros, putos às dezenas correm para a água, atiram-se e por ai se deixam ficar, riem-se aos berros, gritam de tudo, esmurram-se, sangram, levantam-se, voltam a correr para o mar e tudo volta à normalidade. De loucos é como descrevo os momentos entre eles, não falam entre si senão em altos berros, não discutem sem ser com as tantas palavras de ofensa que essas sim percebo. As emoções parecem estar sempre no máximo e os ânimos sempre exaltados. No entanto são tudo momentos fugazes, tudo passa e o silêncio volta aos berros longínquos de outra discussão.

Por volta do meio-dia é uma correria de canalha pela rua principal, uns a sair da escola e outros a entrar. Um professor que não é mais do que um visionário que finalmente fatigado do mundo se refugiou em tal lugar ensina o pouco que os miúdos aprendem. Que é senão as letras do abecedário e o dois vezes dois da tabuada. O necessário para contar os quilos de peixe da pescaria e apontar no caderno “das contas”, o necessário para se viver ali e arrisco-me a dizer, em perfeita e simples felicidade. Desculpem-me o risco, desculpem-me tudo mas não me desculpem as dúvidas de Puerto Maya, que as duvidas são a coisa mais constante nesta minha ida.

Um transexual no meio de um largo grupo de gente pela hora do fim de jantar na escadaria de uma de outras normais e coloridas casas e o mundo que me cai em cima. Retirado da aldeia por mais de um ano para a tal operação que lhe dá o estatuto de mulher e de volta com um par de mamas digno de qualquer senhora, a cara a denunciar algo e o corpo a contrariar. Assobia-me e

- Hola mi amor! Me regala un refresco!

e eu que regalo, e eu que me pergunto como está um transexual numa aldeia pequena como esta. E eu que me pergunto que o transexual não está apenas numa aldeia como esta, um transexual está numa aldeia como esta a conversar com um grande número de gente as suas risadas. E eu que me pergunto que esta agora bela mulher está no seu meio, sem descriminação, sem homofobismo, sem nada senão a amizade das suas amigas e a família que a sua original. E eu que me pergunto quem são os correctos que não é de certo a nossa dita civilização “civilizada”, que não é por certo o nosso Portugal que amo, com a nossa mente tão pequenina. Que eu nem sequer imagino um transexual a viver pacificamente em Cesar, ou em São João da Madeira, ou no Porto, ou em Lisboa senão escondido nos meios que são poucos os que compreendem e aceitam, que eu penso o quão pequenino somos por vezes neste nosso tão grande mundo. E esta pequeníssima aldeia, escondida nas montanhas, perdida de tudo e quase todos a mostrar-me tudo, o humanismo, a simplicidade, a amizade, a família, a vida, a paz e o sossego, e tudo o que prezo nesta minha curta vida a estar presente aqui. Sem complicações, sem exageros, sem dúvidas, sem questões, sem nada senão uma simples e normal vida.

É Simples e conciso: uma cerveja, um atum ou tubarão, os filhos, a família, a festa ao sábado à noite, os putos pela aldeia fora, o rio acima e o mar adentro, as palmeiras e os cocos, a música sempre presente, a taberna, a verdadeira igualdade entre todos, o casebre que não serve mais do que para abrigar da chuva que por vezes desaba, a conversa e o convívio entre todos, as discussões e ponto. Temos uma pequena sociedade a qual me dá tantas dúvidas. Digam-me lá vocês se realmente é o mundo que se tem que explicar a Puerto Maya ou Puerto Maya que se tem que explicar ao mundo.

A praia

O "Hotel"




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