quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Um momento de filme

Por muita desilusão que estas palavras possam trazer a certos amigos que em apostas entraram, ainda não foi desta que fui preso. PONTO.

Existem momentos que valem a pena recordar, este não é um desses momentos, mas por uma questão de curiosidade e para mostrar que nem tudo são rosas nestas minhas andanças, vou contar aqui um pequeno episódio. Que este episódio não deixe alguma alma mais preocupada por amor de deus. Declaro-me completamente inocente em qualquer situação em que seja inocente – como esta!

Era a noite de dois de Novembro a caminho do dia três de Novembro do ano de Cristo de dois mil e nove quanto tudo se passou. Poderia começar por dizer que era uma vez, mas esta vez espero que não seja mais por isso o era uma vez passa a vez ao foi uma vez, por volta das dez da noite, em casa estava muito sossegado quando recebo um telefonema para ir a um tasco aqui ao lado jogar um pouco de bilhar e beber uma cerveja. Como o trabalho diário estava marcado para começar às duas da tarde do dia seguinte, aceitei o convite sem hesitar. Eu e o outro, de seu nome Alejandro Nava lá fomos ao tal tasco que tanto me parecia português. Meia dúzia de velhotes na conversa diária dos factos mais relevantes da vida de cada um, sentados à volta de uma mesa com a sua individual cerveja na frente; três rapazes à volta de uma das seis mesas de bilhar que ali existiam; dois empregados à espera do terminar do dia que nunca mais se aproximava; bandeiras, cachecóis, objectos de recordação, de decoração, mesas de tampo em pedra e pernas em ferro (não maciço claro) e mais uma série de parafernália penduradas nas paredes ou tecto ou apenas pousadas no balcão; um lugar familiar!

Nós, lá ocupamos a nossa mesa, pedimos as duas cervejas e jogamos um bom momento de bem-estar até ser hora do tasco fechar – meia-noite e hora de mudança de dia. Não satisfeitos ainda, compramos meia dúzia de cervejas e paramos na puente como é conhecido o miradouro ali ao lado com uma vista de luzes e luzes e pontinhos de milhares de luzes que é Caracas de noite. Por ali ficamos um bom tempo na conversa que tinha como tema predominante o “disparate de politica” de Hugo Chavez e que ficará para uma crónica futura, que espero ser em breve mas que não hoje que hoje joga o Glorioso e um gajo não pode perder tal acontecimento.

Terminada a meia dúzia de cervejas, que dividida por dois deu três a cada um de nós que éramos dois, lá começamos a descer a colina de Vista Alegre em direcção à minha temporária casa. Numa curva mais apertada do que noventa graus e com a intercepção de outra calle, saí uma motorizada que nos começa a seguir. Sem lhe dar importância lá seguimos o nosso tranquilo caminho, até que. Até que reparamos que a tal motorizada nos seguia independentemente das estreitas ruas pelas quais seguíamos. O meu companheiro de sobrenome Nava, com a sua já treinada mentalidade pela negatividade dada pela delinquência em tal país, pensou logo tratarem-se de dois malandros (eram dois os da motorizada) que nos seguiam com intenções que agradáveis não seriam com certeza. Com tal pensamento na cabeça começamos a fugir, a tentar escapar da moto e em direcção ao posto de polícia de Vista Alegre. Este estava fechado e com a motorizada sempre por detrás de nós continuamos a andar, sem qualquer tipo de paragem até ao momento em que a nossa paragem foi obrigada por outra motorizada que nos cortava o caminho. Esta sim, estávamos certos que era da polícia e então o carro é parado para logo a seguir ver chegar a motorizada que nos seguia com outra atrás de si mas de luzes desligadas (que não demos por ela). Eram então seis polícias de volta do carro. A partir daqui foi o fim do mundo! Pelo menos para mim que nunca na minha ainda curta vida me deparei com tal pânico – dos polícias e meu inclusive. Ao desmontar das motorizadas, aqueles gajos sacam-me das suas pistolas, armam-nas e com elas apontadas a nós começam aos berros para sair do carro, que nós de braços no ar e a dizer que não tínhamos nada lá saímos do carro. Fomos os dois encostados ao carro, mãos no mesmo, revistados até ao nosso ínfimo mais interior (digo interior da forma mais literal que existe que é esta das palavras), insultados até ao nosso pior defeito (eu juro que não tenho metade dos defeitos dos quais me apontavam – inclusive o da pistola estilo SS), para novamente sermos revistados e novamente que eu fui revistado três vezes (um dos policias estou seguro que encontrava prazer no que fazia). Eu, sincero, que depois do pânico inicial de ver uma arma apontada ao carro fui tomado por uma enorme calma e com essa mesma calma lá fui dizendo no meu enrolado castelhano e acompanhado pelo perfeito castelhano do meu amigo que pensávamos que eram malandros que nos seguiam e por isso o medo de tal motorizada, fomos dizendo que eu estava de férias e que não tínhamos nada. “Droga?” “Não, não temos señor polícia!”. Com a revista às nossas pessoas e ao carro a terminar, lá veio o pedido de Cédula de identidade por favor. E eu que não tinha, claro, que só tinha o passaporte e que o mostrei e que juro por sei lá o quê, que a partir daí tudo foi mais fácil e que lá nos deixaram ir tranquilamente sem demais consequências. No final das contas ficou uma história para contar e um aviso (enorme) para ter em conta. E eu que tão cuidadoso com os avisos, que nem os tenho senão das bocas que viveram os avisos. O cuidado nunca é pouco e agora está re-re-re-re-redobrado.

Só mesmo para deixar um conto que quase pareceu de filme mas que a mim não me pareceu nada de filme. PONTO.

domingo, 1 de novembro de 2009

Curaçao

Com a data do meu visa de turista na Venezuela a aproximar-se rapidamente do fim, uma solução teria de ser pensada com brevidade. Ao contrário do que pensava, nem o consulado português em Caracas me poderia renovar o visa, nem a sua renovação seria fácil. No fim de contas e por lógica teria de ser o governo Bolivariano da Venezuela a prolongar a minha estadia neste país, o que prometia ser demoroso e demasiado burocrático. Previa aqui largas dificuldades à continuação da minha estadia neste tropical país. Nada que uns poucos de Bolívares não resolvesse já que aqui tudo se compra, inclusive a nacionalidade Venezuelana. O meu objectivo no entanto não era esse, por isso a segunda opção que apareceu durante uma conversa entre o meu tio Gil e outro fugido português na área de negócio das agências de viagens mostrou-se bastante mais viável. Esta opção seria a de sair da Venezuela por vinte e quatro horas e voltar a entrar, o que de inicio me pareceu um pouco arrojada pela dimensão de tal país. Seria de facto arrojada demais se não existisse um pequeno conjunto de ilhas a meia hora de viagem a sobrevoar o mar do Caribe. A viagem era barata e por dois dias o preço mostrava-se convidativo. Ficou assim decidida a minha viagem à ilha de Curaçao pertencente ao arquipélago das Antilhas Neerlandesas que por sua vez pertence ao Kingdom of Netherlands – Países Baixos em português e aquele país tão longínquo lá na minha Europa.

A ilha do Curaçao é uma pequena ilha na costa da Venezuela com cerca de cento e cinquenta mil habitantes. Ponto. A etimologia da palavra Curaçao nunca se conseguiu realmente determinar originando todavia debates sobre o mesmo. A mais agradável aos ouvidos portugueses é a de que o nome se deve à palavra portuguesa coração já que a ilha descoberta por um grupo de navegadores espanhóis no final do século XV era um importante ponto na rota dos navegadores, tendo sido possivelmente um centro de tráfico de mercadorias. No entanto existem registos de outros nomes que teriam sido dados inicialmente como Curasorbo e Curasoto que significam respectivamente “trago de bebida para cura” e “matagal de cura”, assim como a palavra Curaçao pode ser entendida como a palavra curar. Estes nomes foram dados por portugueses pois a ilha forneceu a cura para o escorbuto que abundava nas tripulações das naus portuguesas que por vezes por ali passavam, provavelmente com a grande abundância de frutos e respectivas vitaminas presentes na flora da ilha. Ponto. A linguagem local é o Papamiento, que diz uma mistura do espanhol e do Deutch (Deutch a linguagem dos Países Baixos). Embora praticamente todas as pessoas falem o mínimo de espanhol e o mínimo dos mínimos de inglês. Ponto.

Esta pequena introdução vem de uma pequena pesquisa. Apenas porque os nomes são para ser ditos e entendidos por aquilo que são. Porque eu gosto dos nomes mas mais gosto das suas origens, porque nos diz tanto e apenas porque sim.

Saí de Caracas ao meio dia em ponto como dizia o tal ticket. Para meu grande espanto mas sem qualquer tipo de pranto, digamos aqui entre nós que neste país, o termo funcionar na normalidade é uma utopia, para nem sequer referir o termo pontualidade (e nós portugueses tão suspeitos nesta matéria). Meia hora de voo e eis que anunciam a aterragem e eu, estúpido, a pensar onde raios estaria a ilha que só via mar – estava na janela do lado direito do avião – claro! Lá de cima nas alturas o horizonte era apenas mar já que a ilha se via de uma ponta à outra, uns meros trinta e pico quilómetros de comprimento multiplicados por uns quinze de largura. Aterra-se num aeroporto minúsculo com não mais do que uma mão cheia de avionetas (ou deverei dizer jactos privados) estacionados em frente a um edifício que tinha montadas em si as letras maiúsculas de CURAÇAO. Aí estava eu, noutro país, noutro lugar, noutro continente. Estava de volta à Europa a uns curtos quilómetros de mar de Caracas. Saí (do avião), entrei (na sala de recolha de malas que não recolhi nenhuma que a minha era um par de cuecas, uma camisa para a noite e uma t-shirt para o dia seguinte), voltei a sair (novamente da sala de recolha de malas que não recolhi nenhuma que a minha era um par de cuecas, uma camisa para a noite e uma t-shirt para o dia seguinte) e entrei (pensava eu que afinal era sair) no aeroporto em si que não era mais do que um grande pavilhão com duas paredes perpendiculares uma à outra e apenas espaço aberto a fazer as vezes das outras duas paredes. A fila para o check in nos dias de chuva tropical por certo fica encharcada. Fiquei encantado com a simplicidade que é beleza de tal aeroporto (não mais do que a beleza do meu Sá Carneiro que tem duas coisas tão bonitas – ou me manda, ou me devolve. Se bem que a estação de comboios de Ovar não fica nada atrás. Mas adiante!), quase sem fronteiras.

(Gosto particularmente da expressão: Mas Adiante!)

Mas adiante que se faz tarde!

A primeira coisa que fiz é a primeira coisa que faço quando saio de um aeroporto: Matar o danado vício, que não era muito mas que festejava uma mais chegada. Sentei-me na esplanada do bar ali cerca, pedi uma cerveja e com o tal vício na boca fiquei eu ali uns quinze minutos (pouco mais ou pouco menos) a pensar no que estaria eu a fazer numa ilha Holandesa perdida no meio do mar Caribe, não sozinho que estava comigo, a meio de Outubro e num estado de calma que pouco a pouco me vai sendo normal. Deixei o pensamento de lado, uma garrafa verde vazia, uma beata no cinzeiro e dirigi-me à central de táxis que os autocarros eram escassos.

- English or Spanish? – perguntei eu.

- Como quiera – respondeu uma senhora entre os seus trinta e quarenta anos e negra e rechonchuda e que não sabia se feia se bonita.

- So, okay, can you please tell me a hotel or a place to stay not too expensive?

- Donde?

- Well, if it isn’t too expensive in the centre of the city, the capital of the island, how is it called?!?!?!

- Willmstad!

- Ah okay, so how much is it per night around the centre?

- It will cost you 80 US $.

- Well, don’t you know something cheaper?

- Se quiere en la ciudad this is the mas barato!

E eu a pensar que porra, que cinquenta euros por uma noite que foi preciso ir para o fim do mundo (e este que não existe) para pagar o preço mais caro da minha vida por uma noite. Eu habituado às camaratas de dez e vinte e trinta pessoas e de cinco e dez e quinze euros e vinte lá nas loucuras das camaratas de cinco pessoas.

- Okay, so can you please take me to a cheap hotel in the city centre please?

- yes, claro que si! Te va a custar 10 US $.

(perdi a cabeça e indignado meti-me no táxi!)

Dez minutos depois e cheguei eu ao Holiday Beach Casino Hotel, que pela recepção se mostrava grande e bom hotel. Cordialidades e afins, pagamento do táxi, e eis que me dizem que não têm quartos disponíveis. Tentei o meu maior ar de indignado e perguntei senão teriam realmente nada. A conversa passou-se então em dialecto local entre a taxista (penso que não seria do CDS-PP) para no fim a recepcionista dizer que como a estadia seria de uma noite apenas estaria disposta a dar pelo mesmo preço uma das cabanas em frente à praia que são alugadas exclusivamente pelo período de um mês. Pensei logo que pelo menos teria qualidade de estadia.

Recepção, piscina e eis que se vê uma pequena baia artificial com uma barreira artificial que embora deixasse entrar a água do mar dava a calma necessária a uma qualquer praia paradisíaca sem quaisquer ondas e assim o turista relaxado na procura do baixar de temperaturas se deixar estar na água com um qualquer famoso cocktail na mão. Era sem dúvida um desses resorts de luxo espalhados pelo mundo a mentir as viagens. E eu ali estava, como um qualquer turista, maravilhado com a vista, a falar com os meus botões que me diziam que o tal lugar era realmente bom e de qualidade. Eu dizia aos botões para terem vergonha nas linhas que os cosiam e eles diziam-me para eu ter vergonha na cara que não podia ficar indiferente ao tal “luxo” das sociedades. Ninguém ganhou na discussão e assim fiquei quieto e calado. Deixei as cuecas, a camisa para a noite e a t-shirt para o dia seguinte na cabana que esta quase no meio da praia, deitei-me uns cinco/setenta minutos, meti uns calções de tecidos próprios de serem molhados, um livro por debaixo de um braço, uma toalha por debaixo do outro braço, caminhei dez metros e no meio da praia deitei-me a ler. Entre mergulhos, leituras, cocktails famosos, cigarros fumados pelo vento e análises quase freudianas de velhotes Estado-unidenses por ali espalhados, passei pelo dia até ao cair do sol. Quando este se caiu dando lugar às estrelas ali pertinho, tomei um banho com sabão daqueles pequeninos que sempre fanados e nunca aproveitados, vesti umas calças, a camisa para a noite e chamei um táxi (os sacanas dos autocarros não queriam mesmo nada comigo que já não os havia àquela hora).

- English or Spanish?

- Como quiera señor.

- Okay, so, for the centre of the city, how much is it? There are some places to eat and some bars around there?

- Si si claro que si, la bahia, es lo mejor. 5 US $.

- Okay, so take me there please.

- No problem Señor.

- And, for going out, do you know something?

- The best is Campo Alegre!

- Is it a bar?

- Es un club de Striptease señor, la chicas san muuuuuy buenas, you have strips all night.

- Okay, thanks.

Veio-me à memória o facto de estar na Holanda e a prostituição ser legal. Veio-me à memória Amesterdão

- Fuck and suck fifty euros sir.

veio-me à memória.

O centro da cidade era dividido por um rio com uma ponte amovível, de um lado casas coloridas, do outro uma praça e mais casa coloridas. Os letreiros nocturnos de luz néon diziam que casino ou night-club, eram sete e meia da noite e as ruas estavam não desertas, não despertas mas a sentir o aproximar da noite, sentiam-se preparativos, existia algo no ar que dava ar de noite que vai ser de festa, aquele ar tão típico do pecado, da espera do mesmo. Os turistas do dia, da praia, já se tinham ido para os hotéis super equipados com tudo o que é preciso equipar, restavam meia dúzia de casais a caminhar de saco de plástico de um qualquer e normal supermercado na mão, certamente com os preparativos para a romântica noite no hotel que tem tudo o necessário. Não sei, é isso mesmo, não sei a que cheirava o ar. Cheirava a promiscuidade, que não era promiscuidade, cheirava a seguranças de porte quase Golias e pele escura, negra, preta a passar de mochila às costas por debaixo das letras néon de Casino, ou night-club e a entrar por uma portinha na qual quase não cabiam, assim por de lado da outra porta grande e principal por debaixo das luzes néon. Não sei, estava num estado que não sabia o que via, era estranho mas passou a deixar de ser quando olhei mais ao fundo, em distância. Aquele centro mostrava-se demasiado bonito. A noite fazia-se de calor tropical e o casaco que trazia na mão mostrava apenas o quão ridículo estaria eu a fazer. Como hábito adquirido pela minha bonita cultura, poderia apostar entre uns vinte e cinco e os trinta graus de temperatura naquela noite (assim como quando apostamos que aquele edifício tem mais de tal anos ou aquela distância é de tal metros ou aquela coisa de tal medida e sempre seguros de nós que somos os machos e que sabemos e as discussões de café acesas com tais trivialidades e que hábito mais bonito) e o calor que não sei se húmido, se seco, que apenas fazia calor e o meu casaco negro de coiro na mão a fazer suar a mão e eu que olho à volta, do outro lado do braço de mar uma série de casas empilhadas desnecessariamente já que a ilha quase deserta mas a mostrar as casas das cidades, as casas pequeninas e empilhadas, e coloridas com as cores a mostrar limites e fronteiras de casas e famílias e a cidade pequenina que dá vontade de abraçar de tão pequenina que é. Tudo aqui tem de ser dito obrigatoriamente em diminutivos, o fortezinho, o restaurantezinho, o barzito, as casinhas, os casinitos, a pontezinha, e as pessoas, grandes e negras e pretas e bonitas! O bigode a pintar a cara dos homens, daqueles bigodes pequeninos e fininhos nas caras largas e cabeças grandes ou as caras estreitas e cabeças compridas, e o bigode tão típico destes lugares tropicais. As mulheres, negras, pretas, grandes e de um encanto, não bonitas, não belas, apenas de um espanto só, só de uma vez se abre a boca de espanto, de desejo, de vontades e elas tão arrogantes a passar, a sorrir por dentro com o sentir do fulminar das nossas vistas nas suas pernas destapadas, ou nos decotados vestidos, ou nas suas nádegas esculpidas por algum deus que negro por certo. E eu ali parado quinze minutos no meio da praça a olhar à volta, no meio de uma cidade que nada tem de novo mas que me traz coisas novas. Não sei o quê por certo, o clima tropical, as gentes tropicais, e as vistas europeias, que não um Amesterdão mas antes uma pequenina vila rodeada de campos de Tulipas e moinhos movidos a vento e Amesterdão ali no meio, que as luzes néon.

E o gajo a passar por mim num sussurro:

- Ax, Cocaine, Weed, Cannabis, Marihuana, Heroin.

E não sei, que algo estranho, parecia tudo tão calmo e coisas tão fora do sítio. Caminhei até à outra margem e voltei. E pessoas poucas. Escolhi o restaurante que serve de canto à praça e manda a esplanada para uma estonteante vista da baia. Escolhi uma lasanha não pelas ganas de lasanha mas pelo preço mais convidativo, um branco chileno que fresquinho escorregava como o do Minho, que não verde mas quase. E um café e por fim um digestivo não porque sim mas porque a vista pedia, e a empregada exigia, e oferecia. Jantei sozinho e nunca me senti sozinho, viajei muito nesse jantar (pelas pernas da morena empregada inclusive), dei três voltas ao mundo, fui duas vezes à lua e tive ainda tempo para voltar a Portugal e matar saudades. Acabei o dito com menos 30 US $ no bolso e uma enorme satisfação interior, estava tocado não pelo copo de vinho ou pelo digestivo mas por uma calma e um sentimento que não sei, nunca o soube! Uma coisa que me passava pela alma e que me parecia quase de espíritos, uma erecção de prazeres tão meus, tão pessoais, tão quase sem poder partilhar, que sou tão egoísta dos sentimentos e o dessa noite foi só meu, que o estado não dopado mas a flutuar, sem consciência, sem nada, apenas uma torrente de pensamentos e sentimentos e vistas e tudo junto e eu a sentir que estava no topo do mundo, a ser mais arrogante que o outro que sou eu. Mas estava com a mente a tentar buscar mais, precisava de ver gente, precisava de sair dali e ver gente, queria estudar as gentes que só me apareciam taxistas desvairados ou perfeitos exemplos fe homens e mulheres e louros e altos e bem-feitos, da Holanda principalmente mas muitos e muitos e muitos e demasiados dos Estados Unidos da América que podres de bêbados se passeavam na rua sem passar ainda muito das nove.

Saí dali, saí da vista e meti-me numa curta perpendicular ali ao lado. Parei no primeiro bar que vi, parei mas não entrei. Li o letreiro de entrada que dizia Happy hour between 10 pm and 11 pm – 6 US $. Não eram dez ainda e assim caminhei um pouco mais, que foi pouco pois não eram dez ainda e já estava eu no bar a ver gente! Holandeses e Americanos sem dúvida, outro grupo que vim a saber mais tarde de ingleses. O bar estava nem por metade mas em meia hora encheu por completo. Encostei-me a um poste com vista para o pátio onde uma parafernália de instrumentos mostrava que naquela noite iria haver música ao vivo, Reggae como disse o barman e para não se afastar muito do estilo local. O baterista de cabelo pelo meio das costas, arranjado em rastas grossas e oleosas e o chapéu com as cores da Jamaica a tapar o topo, uma bengala de madeira de bambu pendurada às costas que me fez lembrar os velhotes de bicicleta com o guarda-chuva pendurado nas costas do casaco, pela rua central de Cesar abaixo em direcção às cavadas, vindos do “Abelino” e de umas punhetas de bacalhau. E que nada tem a ver com os velhotes de Cesar, muito menos com os do “Abelino” e no entanto um velhote com a barba branca a pintar-lhe a cara escura e baterista de uma banda reggae. A Happy Hour começou, os ânimos foram ao rubro, dei por mim no meio do grupo de ingleses que marinheiros com esposa no Pais de Gales, a brindarem ruidosamente a cerveja que transbordava dos copos com bastante frequência. Eu a falar das saudades dos meus tempos de Inglaterra e eles a falarem das suas saudades da SUA pátria. E a falar de futebol e do Glorioso Benfica e do Arsenal e das conversas de marinheiros que eu era infiltrado e que o Capitão do navio mercante podre de bebido a contrastar a dança das negras que sensuais na salsa e merengue e ele bruto e de braços no ar a anunciar o fim de algo (da dança talvez) com a cerveja a transbordar-lhe na cabeça, a banhar-lhe a alma que essa já suja de marinheiro da sujidade que é limpa dos marinheiros. E lá fora em frente ao concerto que entretanto tinha começado com o baterista viejo com ritmos nada apropriados para viejos, os louros, altos e vermelhos do escaldão diário parados, em frente e parados de bêbados que caiam em pé e parados, que conversavam, que a música não entrava senão naqueles exibicionistas como eu que não borracho como eles em frente ao improvisado palco berravam e gritavam sem ritmo pelo meio daquele louco e bonito ritmo do reggae.

Farto daquilo, viciado em mim e nos pensamentos, num estado que nunca afectado pelas duas cervejas afastei-me dos marinheiros, perdi o egoísmo e o egocentrismo e deixei-os ali a gozar a folga do dia seguinte que estava a ser a da noite, deixei-os em paz e sossego com as minhas desmesuradas e exageradas perguntas, invasivas para com eles e evasivas para comigo que não queria saber de mim. Deixei-me estar ali por dúzia e meia de minutos e fatigado com os Americanos louros e altos e parados e indiferentes à musica que dava ânimo aos mais bebidos apenas que esses sim eram os únicos honestos e sinceros para consigo naquele lugar, tirei o casaco negro de coiro do braço, meti-o na mão e saí dali.

Sem acreditar que tenha qualquer tipo de relevância digo que fora do lugar e com a música cada vez mais distante encontrei a paragem de táxis mais próxima, meti-me dentro de um táxi e

- Campo Alegre please.

O taxista não disse nada sequer, habituado que deveria estar ao nome, no lugar de pendura seguia uma negra que não sei se esposa, que penso o não dada a diferença de idades (nada com que as gentes daqui não me deixem de surpreender com as suas relações tão diferentes), não sei se amante que me parecia dada a sua maneira de se dar a ele, que não sei de nada e muito menos soube já que o idioma entre eles era aquele papamiento que tanto me intrigava e que metia espanhol por certo, algumas expressões que se pareciam às de linguagens centro europeias e raios me parta senão tinha expressões portuguesas. O Boa Noite, dito como um verdadeiro português não me lixem mas tem de vir de algum lado. O dialecto que tanto me intrigou com as suas palavras tão portuguesas ditas desprovidas de sotaque, sem nada e apenas uma palavra pelo meio de muitas sem sentido que diziam-se portuguesas com todo o seu ser. Assim a viajar pelas línguas perdi a conta ao tempo que demorei a chegar ao Campo alegre, o striptease club mais famoso de Curaçao e segundo uma pouco confiável fonte o maior striptease club existente no mundo sobre alçada governamental (que por sua vez tem a sua lógica já que só o facto de estar por alçada governamental limita por si só a muito poucos este tipo de lugares). Saí do táxi e entrei, pelo caminho consegui uma conversa ainda com um homem negro gigante que com toda a simpatia do mundo me dizia que mais do que vinte US $ não poderia pagar se quisesse o prazer mentido de uma prostituta – agradeci e segui o meu caminho em direcção ao salão principal onde um palco com um poste metálico e luzente das limpezas pormenorizadamente feitas todas as noites com a pele dos corpos do pecado (qual pecado qual o quê!), sofás para recostar a excitação de ver os corpos desnudos estavam dispostos á volta do palco. Mesas cheias de garrafas vazias e garrafas cheias ficavam em frente aos sofás e o balcão de onde saiam e entravam uma dúzia de barmen em direcção às mesas das garrafas vazias e das garrafas cheias, ficava situado atrás de tudo, do palco, das mesas e dos sofás dos prazeres. Cada sofá estava estrategicamente calculado para duas pessoas, com o recosto redondo a tomar a forma das costas de duas pessoas, com a particularidade de convergir de maneira a que estas duas pessoas se aconcheguem uma à outra. O cálculo parecia ir ao pormenor para que no fim o jogo de sedução vencesse e a plata dispendida fosse maior do que a de uma simples bebida, ou duas.

Sentei-me num desses sofás para duas pessoas. Sentei-me com vista privilegiada para o palco, com vista particularmente privilegiada para a barra cilíndrica metálica no meio do mesmo, preso por duas pontas, no chão do palco e no tecto do salão que este grande. Umas boas dezenas de pessoas e quase todas sentadas (e lá voltam as apostas sem sentido dos nossos machos portugueses). Pedi uma cerveja e deixei-me estar ali sossegado a ver. Poderia falar do tempo que estive ali sentado a ver mas perdi a conta ao tempo passados cinco minutos de me sentar e começar a ver. Nada mais fazia sentido no mundo senão aquele particular mundo. Esqueci-me de tudo e de todos, via apenas os homens sentados nos sofás calculados para duas pessoas e estudava o jogo das prostitutas em pé ao balcão ou a exibir-se nos corredores criados pelos sofás calculados para a intimidade de duas pessoas. Entre os sofás que tinham como centro as mesas de garrafas cheias e garrafas de vazias e apenas números grandes de garrafas faziam-se autênticas passagens de modelos. Passavam de negras a loiras, (gosto mais de loiras do que de louras), passavam de artificiais e plásticas a velhas e sempre orgulhosamente naturais, passavam obesas já e magras esculturais e passavam todas as mulheres de um qualquer sonho molhado de um qualquer homem. Eu admirava, repudiava, espantava-me, excitava-me, assobiava, falava, e despertava em mim qualquer tipo de emoção que pode uma mulher, miúda, garota ou senhora despertar em mim fisicamente. Assim me deixei estar na bancada principal daquele estádio a ver o excitante jogo que se desenrolava diante dos meus olhos, como um simples espectador a ver quem ganhava ou perdia – até hoje não sei quem ganha aquele jogo todos os dias, as dúvidas aliás são demasiado grandes – As dúvidas, sempre as dúvidas!

No meio deste desenfreado jogo sem regras começou o striptease. Primeiro uma miúda que sem me lembrar sequer da cor do seu cabelo, me lembro exactamente a forma artificial do seu rabo e dos seus seios. Lembro-me da maneira como usava isso a seu favor, lembro-me de como se deitava no chão e fazia um samba que dava a sensação das peças do seu corpo se desmancharem a qualquer momento, apenas porque as peças eram artificias. Trepava o varão de cabeça para baixo e lá no topo fazia-se deslizar suavemente até ao palco. Tanto se desenfreava na luta com o homem imaginário sempre por debaixo dela como lentamente tirava a parte de cima do minúsculo soutien ou a sua minúscula roupa interior tão sensual, tão dentro de moda e tão provavelmente cara! Acabou assim, não como veio ao mundo porque ao mundo veio sem saber de nada, ao mundo veio assim e apenas sem nada, nua por completo. Ali naquele palco onde um velho asqueroso de bigode e sotaque italiano apresentava cada movimento ao mínimo pormenor (e eu a dizer: - Cala-te pá!), ali naquele palco ela sem roupa nunca nua ficou, a capa que levava não deixava ver nada. Um corpo de mulher completamente desnuda transforma-se de repente na coisa mais feia, mais horrível do mundo quando deveria ser a mais bonita do mundo. Aquela capa que não deixa ver nada, que não deixa transparecer nada funciona como a impossibilidade de mostrar emoções; a invisibilidade da mulher. E eu ali, sentado quase a chorar, lembro-me que quase chorei quando a musica no fim mas a tocar, a mulher vestida apenas com a capa invisível que só ela sabe usar, o bigode asqueroso a anunciar a mostra da beleza da mulher e ela, ela saí em passo de corrida pela mesma porta que entrou, e a mesma porta que vai entrar mais uma centena de vezes, e a porta que dá para o mundo dela porque quando ela sai dele está ali – com a capa. E eu ali, sentado, mais asqueroso do que o bigode, mais encantado que um adolescente, absorto de tudo com o meu silencioso pranto e também a minha silenciosa alegria de ver aquilo, excitado claro!

Luta esta perdida à partida entre um homem e a racionalidade, luta esta perdida por mim que excitado estava com tudo aquilo que se passava à minha volta, excitado estava com os pensamentos daquilo tudo. A cerveja tinha morrido, eu estava parado no tempo durante aquelas duas músicas, nada mais existia à minha volta senão a miúda e a sua capa transparente, nada mais existia senão eu e ela e ela ali, com a sua capa transparente, que não era mais do que o seu pranto e eu ali indiferente a ela que ela indiferente a tudo. Senti desprezo no fim com toda a minha arrogância, senti pena com a ainda minha maior arrogância. Senti dor e revolta, senti tudo naquelas duas músicas! E a arrogância a fazer troça de mim que agora “La grange” a música que ouço e dar-me razão, faz troça de mim e eu tão pequenino.

Ela foi-se então por fim no seu passo de quase corrida com o asqueroso bigode a falar que eu não o ouvia e o odiava, eu que não sei o que é ódio sabendo que o odiava naquele momento. O público bateu palmas, rejubilou e gritou e eu finalmente deixei-me cair para trás para me encostar no sofá calculado milimetricamente para que duas pessoas se sintam intimas, sinta, dá-me riso o sinta, desculpem, para que duas pessoas se mintam mutuamente de intimidade.

Enquanto isto uma loura de seios estonteantes aproxima-se de mim e pergunta se quero companhia. Eu afectado com a mentira da dança digo sem hesitar que sim e ela senta-se ao meu lado no lugar por ocupar naquele sofá calculado ao pormenor pela mentira, estava completo agora que éramos dois. Ela mantém a sua distância que não física que estava ali pegada a mim como a obrigava o sofá calculado na matemática que se prova mentirosa, que eu nada próximo dela. Pergunto-lhe o nome e ela responde, não digo, não interessa, pergunto-lhe de onde vem e ela diz que da Colômbia, digo-lhe que sou um cretino e que estou ali a mentir a dizer que quero apenas observar, ver apenas, que sou um curioso de tudo e cretino e mais mentiroso sou quando digo isto que estou ali porque estou, porque apenas estou ali e que estar ali é apenas a prova de que estou a ali. Pergunta-me se quero ir para o quarto dela, digo que não que quero ver o próximo show e digo-lhe que não irei para o quarto dela, que não quero sexo, digo-lhe que eu pagava todo o dinheiro para ter sexo com ela mas digo-lhe que não gosto de sexo, digo-lhe que só faço amor, e digo-lhe que ela só quer sexo e que isso eu não faço, porque todas as amantes que tive foram de amor, mesmo aquelas que não sabia o nome sequer, que a minha entrega é sempre de amor por algo, um momento, uma pessoa, uma noite, uma coisa e que se pagar por isso vou perder o amor e digo-lhe que o amor é a única coisa que me resta na coisa dos sentimentos. Pergunta-me se estou apaixonado, é normal que eu falo de amor e só de amor e eu sem sentido algum que só eu vejo o que penso que eu saiba não há ainda máquinas de ler a mente. E ela no seu diminuto vestido que lhe consigo ver a roupa interior preta e ela a mostrá-la na esperança de me levar para o recanto do pecado dela (esta palavra do pecado faz-me confusão, vou tentar não a usar mais) e eu a dizer que não e ela a insistir a insistir até que lhe digo que lhe pago uma ou duas bebidas se ela ficar ali a falar comigo meia hora. Ela olha para o relógio, olha para mim e pensa durante três a cinco segundos para dizer que sim. As duas bebidas ficaram-me pelo preço de um livro de bolso por isso sem remorsos. Disse-lhe que me falasse dela, porque estava ali uma rapariga colombiana de vinte anos num pais onde a prostituição é legal e a prostituir-se, perguntei-lhe a história de vida dela e tenho quase a certeza que me mentiu em todas as palavras que disse, não sei, falou a verdade talvez, contou a história da triste vida que teve, contou a história de um pai e uma mãe com um negocio de roupa, a história de uma miúda que tinha tudo e perdeu tudo num “mau negocio”, que o irmão na universidade, que ela habituada a luxos, que ela sem luxos e sem vida (para ela), que lhe propuseram dinheiro em troca de “favores” e que com “favores” pagou um pouco mais de tempo de luxos, dela e dos país, que acabou esse tempo e que ela decidiu fazer uma “viagem” de dois anos e que agora estava no fim do primeiro ano, ali naquela ilha perdida do mundo para ser um mundo perdido de tudo o que o dinheiro possa pagar. Escutei-a e nunca interrompi, quando acabou perguntei-lhe uma coisa mais e que era senão como é que ela aguentava o sacrifício todos os dias, como conseguia aquilo todos os dias. Pela primeira vez vi uma expressão vinda de si e que foi não mais do que um sincero encolher de ombros seguidos de um: - Pienso apenas de que es uno dia mas. E pronto, fiquei vazio, não de mim mas de ela que a apatia que sentia era demasiado fria, demasiado contagiosa, que eu fiquei apático e sem saber mais do que pensar. Desviei-me da mente, olhei para ela e disse-lhe que ela tinha sorte por ter o sentimento mais horrível do mundo e que lhe dão o nome de apatia. Disse-lhe um adeus repentino e ela sempre apática que agora sincera me parecia disse adeus.

Fui-me dali em passo de corrida, olhei para trás uma última vez para a ver sentada ainda no sofá de cálculos pormenorizados dos”sentimentos” e fui-me de vez. Estava perturbado depois disso, primeiro o visual que me mostrava nada de apatia mas “apenas” ódio ao mundo, uma raiva de lhe partir os dentes, a qualquer homem do mundo ali presente, eu inclusive e depois a apatia total, depois o nada, depois o vazio pronto. Ponto.

O dia seguinte foi de acordar ao meio da manhã, caminhar pela cidade e espantar-me com os enormes cruzeiros que por ali passavam cheios dos seus luxos e eu cheio de apatia – ainda – que pouco a pouco, até um dia vou perder a apatia. E isto não é uma ameaça meus amigos.

A expressão pouco a pouco é das expressões mais geniais das que conheço.


Forte Espanhol

Tranquilidade invadida pelos monstros

Procurada pelos turistas

Um toque de Amesterdão