quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Puerto Maya - Capitulo 2

Acho que não me canso de falar de Puerto Maya, ou antes, acho que não me caso de pensar em Puerto Maya, de estar em Puerto Maya. Depois de não ter regressado quando planeado e na altura das sagradas festas desta pequena aldeia, eis que finalmente o meu tio Gil dá o abalo e uma semana depois das mesmas lá voltei eu a tal aldeia na companhia deste mesmo tio, um amigo do mesmo e um outro amigo do amigo do mesmo. Todos portugueses: dois emigrantes e dois não emigrantes, dois do norte português e dois da ilha da Madeira, tudo misturado dá demasiada confusão para explicar. Não interessa de facto explicar – todos portugueses!

Cada vez que lá volto, sou constantemente bombardeado com perguntas para que eu explique o mundo àquelas gentes. Cada vez que lá volto penso se é o mundo que se deve explicar a Puerto Maya ou se será Puerto Maya que se deve explicar ao mundo. Todo o mundo em geral perde de facto importância tal a sua demência quando o comparo a esta sobriedade e simplicidade que é esta vila, mesmo sendo os seus habitantes quase alcoólicos. Puerto Maya para mim é cada vez mais a explicação do sentido da vida – em teorias filosóficas claro. Penso e repenso no que será de facto o objectivo de uma vida para um Europeu como sou de gema e coração, penso no objectivo de vida de qualquer pessoa daquele lugar, penso no errado e no certo e duvido de quem estará mais certo ou mais errado, ou apenas menos errado.

A vila é pequena, tem cerca de quinhentos habitantes (começam a ser demasiados) e umas duzentas casas. A população vive única e exclusivamente de uma coisa – o peixe que pesca do mar. Os homens claro que as mulheres vivem com a maternidade como profissão e a conversa fiada como hobby. Os homens saem ou de noite cerrada para o mar alto ou manhã cedo para o mesmo, a buscar o sustento das muitas vidas que constituem a sua família. Pescam e vendem aquilo que pescam. Voltam ao mar apenas quando o dinheiro obtido com a sua ultima pescaria se acaba, o objectivo é apenas uma televisão nova, meia dúzia de sacos de arroz ou um naco de carne, nem uma casa mais confortável serve de desculpa, não é preciso na verdade já que a canalha passa o tempo na rua ou na praia ou na mata ou no rio ou onde quer que exista uma brincadeira nova. As mulheres passam o dia sentadas no largo mais próximo a conversar com as vizinhas mais próximas. Olham-me de sorrisos na cara quando passo por elas e um piropo sai sempre das suas bocas de grandes e escuros lábios a ver se conseguem um qualquer romance para dar mais temas à sua conversa diária.

A maior parte é de largas proporções, gordas em demasia nas suas cadeiras de plástico a comer um ou outro petisco e a beber refresco e cerveja e sumo e o que quer que haja à mão.

- Hola guapo, nos regala un refresco!

Lá de vez em quando uma mãe lá coloca uma mama à disposição para dar de mamar à última cria da ninhada. O resto da mesma anda por ai, ela não sabe, assim como não sabe a mãe que está ao lado. Passam em bandos de 8 – 10 putos, em correria e aos chutos a uma garrafa de plástico. Param quando me vêm e arrancam em desenfreada correria para me bombardearem com perguntas, que eu não lhes entendo metade do que dizem, não pelo meu castelhano arranhado mas pelo seu castelhano improvisado. Sorrio

- Habla dispacio shamo!

E eles que nunca falam devagar, nem com espaço entre palavras, nem em castelhano, nem em algo que eu realmente entenda.

Os homens todos na praia – ou a carregar o peixe do seu barco ou a ver o peixe do barco dos outros, em competição diária dita em quilogramas de cardumes ou em libras de um singular. O Shiva e ancião da aldeia sentado numa mais cadeira de plástico com o charuto no canto da boca. A barba branca de cor e comprida de desleixo pinta-lhe a cara negra. Sorri com todos os seus dentes gastos para mim e começa um falar rouco naquele castelhano que tanto me esforço para entender, sem esforço sorrio e ele satisfeito com o meu sorriso volta a sorrir e vira-se de novo para o mar. O mar, esse enche-se de pontos negros, putos às dezenas correm para a água, atiram-se e por ai se deixam ficar, riem-se aos berros, gritam de tudo, esmurram-se, sangram, levantam-se, voltam a correr para o mar e tudo volta à normalidade. De loucos é como descrevo os momentos entre eles, não falam entre si senão em altos berros, não discutem sem ser com as tantas palavras de ofensa que essas sim percebo. As emoções parecem estar sempre no máximo e os ânimos sempre exaltados. No entanto são tudo momentos fugazes, tudo passa e o silêncio volta aos berros longínquos de outra discussão.

Por volta do meio-dia é uma correria de canalha pela rua principal, uns a sair da escola e outros a entrar. Um professor que não é mais do que um visionário que finalmente fatigado do mundo se refugiou em tal lugar ensina o pouco que os miúdos aprendem. Que é senão as letras do abecedário e o dois vezes dois da tabuada. O necessário para contar os quilos de peixe da pescaria e apontar no caderno “das contas”, o necessário para se viver ali e arrisco-me a dizer, em perfeita e simples felicidade. Desculpem-me o risco, desculpem-me tudo mas não me desculpem as dúvidas de Puerto Maya, que as duvidas são a coisa mais constante nesta minha ida.

Um transexual no meio de um largo grupo de gente pela hora do fim de jantar na escadaria de uma de outras normais e coloridas casas e o mundo que me cai em cima. Retirado da aldeia por mais de um ano para a tal operação que lhe dá o estatuto de mulher e de volta com um par de mamas digno de qualquer senhora, a cara a denunciar algo e o corpo a contrariar. Assobia-me e

- Hola mi amor! Me regala un refresco!

e eu que regalo, e eu que me pergunto como está um transexual numa aldeia pequena como esta. E eu que me pergunto que o transexual não está apenas numa aldeia como esta, um transexual está numa aldeia como esta a conversar com um grande número de gente as suas risadas. E eu que me pergunto que esta agora bela mulher está no seu meio, sem descriminação, sem homofobismo, sem nada senão a amizade das suas amigas e a família que a sua original. E eu que me pergunto quem são os correctos que não é de certo a nossa dita civilização “civilizada”, que não é por certo o nosso Portugal que amo, com a nossa mente tão pequenina. Que eu nem sequer imagino um transexual a viver pacificamente em Cesar, ou em São João da Madeira, ou no Porto, ou em Lisboa senão escondido nos meios que são poucos os que compreendem e aceitam, que eu penso o quão pequenino somos por vezes neste nosso tão grande mundo. E esta pequeníssima aldeia, escondida nas montanhas, perdida de tudo e quase todos a mostrar-me tudo, o humanismo, a simplicidade, a amizade, a família, a vida, a paz e o sossego, e tudo o que prezo nesta minha curta vida a estar presente aqui. Sem complicações, sem exageros, sem dúvidas, sem questões, sem nada senão uma simples e normal vida.

É Simples e conciso: uma cerveja, um atum ou tubarão, os filhos, a família, a festa ao sábado à noite, os putos pela aldeia fora, o rio acima e o mar adentro, as palmeiras e os cocos, a música sempre presente, a taberna, a verdadeira igualdade entre todos, o casebre que não serve mais do que para abrigar da chuva que por vezes desaba, a conversa e o convívio entre todos, as discussões e ponto. Temos uma pequena sociedade a qual me dá tantas dúvidas. Digam-me lá vocês se realmente é o mundo que se tem que explicar a Puerto Maya ou Puerto Maya que se tem que explicar ao mundo.

A praia

O "Hotel"




Vista de cima


1 comentário:

  1. Boas Gilinho!
    Essas paisagens e vivências são realmente paparoca cerebral da melhor!!! Eu à minha maneira alimento-me de outras pastagens também, mas não com essa carga natural, selvagem, diferente... também muito por força de não ter a tua vidinha :)

    Quando falas em responsabilidades, etc... acho que misturas-te com socialismos, politicas, éticas... isso, amigo, faz tu a tua, eu apesar de tudo acho-te bastante responsável, afinal estás num país carregado de armas e assasinos :) tu só matas coelhos... estás num país com acessos a drogas e tráfico de mulheres... e andas a curtir uma praia, a gozar a natureza, a fumar uns bons cigarrinhos... Amigo, tu és responsável... goza e sê livre, tu sabes fazer isso muito bem!

    Vai continuando assim a deliciar a malta por cá! Abraço!

    Fininhu*

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